No imparável ritmo anual, experienciamos as últimas manifestações de Verão, preparando-nos, pouco a pouco – aqui, na nossa terra, ainda mais lentamente – para um reencontro connosco próprios sob a égide do Outono.
Tudo o que se erguia na natureza na direcção da luz cósmica vai murchando, fenecendo e, numa rendição às forças da Terra, caindo sobre ela, alimentando-a com o seu corpo. À nossa volta ergue-se uma nova dinâmica, inversa à anterior: é uma dinâmica de penetração, de interioridade, de aceitação, coada por uma atmosfera de sereno despojamento, com que a nudez do mundo vegetal se vai cobrindo.
Gostaria de partilhar essa dinâmica na vivência do mergulhar na direcção de si mesmo e, por essa via, na direcção da essencialidade humana, e portanto na direcção de todos os outros.
Muitas das nossas dificuldades diárias – assim me parece – provêm de uma certa incapacidade de mantermos um diálogo sereno entre a interioridade e a exterioridade das coisas e dos seres, criando momentos de dilaceração entre ambas que acabam separando-me de mim, separando-me dos outros, separando-me do mundo… Agarramo-nos então às ideias que vivificam o nosso pensar, desgarrando-as dos nossos fazeres diários, experimentando um sentimento de desconforto, senão mesmo de ressentimento para connosco próprios, que rapidamente alastra na direcção do mundo circundante, que
vislumbramos incompreensível e onde nos revemos como estranhos. De acordo com a visão antroposófica, o fenómeno primordial da ciência social consiste no facto de quando um homem está perante outro, um deles está sempre atarefado em adormecer ou a entorpecer o outro, enquanto que este procura continuamente manter-se desperto.
Na verdade, no fim do dia, depois de o vivermos face a muitos outros seres humanos, a sensação de cansaço emerge de uma luta inglória que nos parece termos travado contra o que não sou eu, para que seja como eu! Mas quem sou eu realmente, se tudo o que vejo acontecer no mundo, é em mim que realmente acontece? ·
Vivemos num tempo de guerra (a este nível verdadeiramente de todos contra todos… ), de confronto, de resistência, de impenetrabilidade, em que o meu limite físico é como um escudo visível que eu exibo para me afirmar e portanto, me proteger. E como poucos arredam pé desse limite, resistindo enquanto podem às investidas do outro, os choques tornam-se imprevisíveis, mas frequentes.
A consciência atual leva-nos a afirmar demasiadas vezes o que EU PENSO, EU SINTO, EU CREIO, EU FAÇO, como armas contra todos os invasores… E, no entanto, no rescaldo destas guerras diárias, envoltos em cansaço, como nos descobrimos frágeis, carregando a inutilidade das nossas armas, interrogando-nos sobre o que defendemos nós realmente! Que ordem me esforcei por instaurar no mundo, estando ela ausente em mim? O que decidi não aceitar, para que o mundo me aceite, a mim?
Na verdade, é-me fácil enumerar tudo o que eu não sei ou não quero aceitar. Difícil é descortinar o fenómeno oposto, a aceitação de algo que me trouxesse tréguas às minhas pequenas-grandes guerras.
Aceitar: o que faço, quando aceito algo, um beijo, um presente, uma ajuda? Um gesto que permita ao outro aproximar-se o suficiente para tocar o espaço que era meu e que eu, de algum modo, disponibilizo para que o beijo, o presente, a ajuda cheguem até mim, me toquem desarmada. É essa disponibilidade da minha parte que permite a concretização do ato do outro. Sabemos por experiência o que é o beijo, o presente, a ajuda recusada: a porta que de súbito se fecha sobre o nosso movimento de aproximação, deixando-nos suspensos sobre um grande vazio.
Aceitar o(s) outro(s), o·que pensa(m), o que sente(m), o que faz(em) e permitir uma aproximação, disponibilizando espaço que antes só eu ocupava. E é na medida em que essa oferta de espaço é vislumbrada pelo outro que ele, sabendo que vai ser aceite, confia e se aproxima. É nesse exacto ponto que se inicia o encontro.
Parecendo simples revela-se no entanto difícil. Porquê? Porque o que alimenta a capacidade de aceitar é o estar interiormente em paz consigo e com o mundo, ou seja, aberto à qualidade de todos os possíveis encontros. Estar em paz, é uma atitude que contraria o estar em guerra, lugar de todos os desencontros. É uma atitude que emana da vontade primordial, que se manifesta em nós com suavidade. Para eu estar em paz, eu tenho que ser um pouco menos eu, mais permeável ao não-eu, através de um espaço esvaziado de mim, expectante e sensível ao outro, e não ao modo como ele
me afecta. Estar em paz é acreditar sem reservas que seja o mundo como for, aceitá-lo-ei incondicionalmente. Se eu imponho condições prévias, avanço em mim, fechando um pouco mais o espaço, nego a essência do encontro, inicio uma nova guerra relativamente àquilo a que imponho as minhas condições.
Sem essa ausência de condições não há verdadeira escuta, verdadeiro acolhimento, verdadeira aceitação: não há encontro!
Mas eu quero encontrar o outro, digo-o a mim própria diariamente. Então porque imponho condições? Porque na verdade eu penso que tenho que ajudar a mudar o mundo para melhor. E, no meu ímpeto (insuflado de uma
vontade forte que emana do sentimento de mim, inevitável neste acordar da consciência atual), acredito que, para fazê-lo, tenho que me impor ao mundo que eu desejo diferente. Ora o mundo só será diferente se for penetrado por algo de novo. E, o que eu trago já em mim, que me tem permitido ancorar com tanta força aqui, afirmando-me com tanta veemência, será algo de novo? Não o é, exactamente porque isso é o que EU JÁ SOU, JÁ PENSO, JÁ FAÇO! Portanto, através de mim (onde verdadeiramente tudo se passa), tudo isso já está no mundo, no mundo que eu rejeito. Na realidade, é quando eu recuo desse eu já… que disponibilizo o espaço que só eu ocupava, permitindo que nele outro penetre, que verdadeiramente algo de novo pode acontecer: de uma troca de realidades uma nova realidade, de uma interpenetração de espaços, um novo espaço preenchido com o resultado de um encontro. E esse resultado é a mudança que o mundo necessita para ser melhor.
Da aceitação nasce o novo. Da aceitação que conscientemente disponibiliza, que verdadeiramente escuta, que está ativa, porque presta atenção. A minha atenção é o que está mais perto de mim, na verdade nela eu estou acordado para. Neste caso para o outro, para o seu mundo, incondicionalmente. É do· encontro destas duas esferas que nasce uma nova esfera, uma nova possibilidade de estar no mundo: uma união num mundo de desuniões.
A nossa sede de amor, é também uma sede de união, num mundo fragmentado pela apreensão sensorial, no qual vivemos efectivamente separados da nossa essência unificadora. Quando queremos conhecer algo – e nesse querer está implícita uma aceitação incondicional –
preparamo-nos para amar esse algo, porque pela atenção, unimos a nossa esfera à sua.
A espada de Micael não mata o dragão, como tantas representações iconográficas nos mostram, ela simplesmente o domina sob o olhar sério do cavaleiro, transformando-o num novo ser. Esse impulso transformador habita o nosso coração, assim consigamos erguer nele a espada! Impõem
se-me pois aceitar o dragão que em mim habita, aceitando-me, sem condições, isto é, sem guerras comigo própria. Estar em paz comigo abrirá em mim um novo espaço consciente do encontro com o que eu já sou, no qual pela via do (auto)conhecimento poderei fazer-me ressurgir unificada pelos laços do amor, com a minha própria essência.
Se a paz viver em mim, ela viverá no mundo, porque, como o Outono nos anuncia mais uma vez, tudo o que brotará na Primavera para o mundo, terá que germinar antes no seio da Terra.
Leonor Malik
Outono 2022