Por causa da(s) guerra(s)

Mais uma vez o Verão, os dias longos de sol, as gramíneas flutuando em ondas de calor, a paisagem cada vez mais dominada pela inefável cor de tudo o que já secou, como se a Terra segurasse o último fio de luz, prestes a soltar se para a eterna fonte, de onde tudo nos vem.

Este ano coube-nos viver a Guerra, nas guerras que se travam, cada vez mais perto de nós, e que nos chegam pelas vozes que delas diariamente nos contam, pelas multidões que contra elas vemos diariamente caminharem, na tentativa de compreender o sentido do seu sem-sentido. Ao mesmo tempo, talvez pela primeira vez, assistimos também como neste nosso mundo do aqui e do agora, uma parte da humanidade transporta o impulso do arcanjo que aceitou a responsabilidade de abrir o caminho a cada homem para encontrar o sentido do bem e da verdade que a incarnação crística depositou na Terra.

Por causa da(s) guerra(s), a inteligência cósmica sob o olhar sério de Micael, revelou-se nas palavras, nos gestos, nas ações de muitos seres humanos, em muitos lugares da terra, que a envolveram como uma imensa onda de luz e calor que fizeram que alguma da escuridão e do peso do mal se dissipassem, como nuvem ameaçadora que logo se desfaz após intensa tempestade.

Por causa da(s) guerra(s), soubemos que existem seres humanos, por esse mundo fora, que abriram o seu coração à compreensão do sentido da vida, à compaixão pelos que sofrem, à vontade de proteger e curar, mesmo em locais longínquos do seu quotidiano.

Por causa da(s) guerra(s), esses seres humanos tornaram-se de súbito visíveis, falaram em uníssono, atuaram (e sem dúvida que ainda atuam) numa mesma direção, partilhando esforços, comungando ideais.

Por causa da(s) guerra(s), tornou-se claro que hoje não se trata de nos interrogarmos sobre onde está a geração de Micael mas antes de a reconhecer à nossa volta ou, por outras palavras, valorizar o que, à nossa volta, é dela testemunho: face a esta inesperada visibilidade, olharmos através dela, apagando as suas vestes, os seus adornos, as suas multiculturalidades e concentrarmo-­nos no essencial: o reconhecimento – conhecer de novo – da manifestação intrínseca do homem de hoje, centelha da mesma chama sagrada de onde emanou, renascida em Gólgota e que Micael alimenta no âmago livre da alma da consciência.

Hoje, já não se trata de pesar as diferenças, a multiplicidade, as formas diversas de como nos projetamos no mundo, na tentativa de encontrarmos uma unidade cómoda que já perdemos, obrigando cada um, para se sentir aceite, ajustar-se a esse olhar avaliador. Como nos afirmou Köhler, essa é ainda a perspetiva de uma sociedade defeituosista, que funciona avaliando tudo, que mais não é que procurar o defeito, a partir de uma qualquer bitola avaliativa, imposta ao ser do outro

1). Hoje, trata-se de valorizar, que é efetivamente o ponto de partida para qualquer processo curativo: despidos de bitolas prévias, olharmos para além do imediato e descobrirmos o que está lá, servindo o homem ideal, de que nos falava Schiller, porque só ele é.

2) Abrirmos a nossa interioridade para acolher a do outro, ultrapassando a exterioridade que nos separa, povoada por uma panóplia de pormenores discordantes e supérfluos. Esquecer por momentos o que nos caracteriza de forma específica e deixar que, o que somos no silêncio tranquilo do Ser, irrompa pelo espaço de permeio, apague tudo o que é acessório, permitindo-nos reconhecer, muito para além das palavras, o nosso irmão e simplesmente amá-lo naquele curto mas infinito momento em que realmente o vimos.

Hoje, reconhecer alguém como irmão, no seio da diversidade a que nos conduziu a nossa individualidade, é a forma de aprendermos a amar incondicionalmente, aceitando sem mágoa que, por enquanto, ela dure apenas o tempo dessa comunhão intensa mas ainda tão efémera: de súbito, ser capaz de amar para além das diferenças, das exterioridades de permeio, de tudo o que nele gostamos e não gostamos.

Para muitos de nós, esta experiência quase indescritível, frágil como uma borboleta, mas avassaladora como a vida, é ainda quase tudo o que nos toca realmente, no fundo de nós mesmos, desse novo impulso que a entidade crística trouxe para a Terra, tornando-se aqui nosso irmão: porque habitou num homem, no corpo do qual experimentou, como cada um de nós experimenta diariamente, a escuridão, a dúvida, o medo e finalmente a morte física, como também cada um de nós, um dia, há-de experimentar mais uma vez. Condensando em três anos todo o percurso biográfico do ser humano, viveu como nós vivemos aqui na Terra, prisioneiros, mas ao mesmo tempo livres, guardando desse imenso sacrifício, no seio da sua luz divina, mas agora também humana, a verdade do nosso sofrimento, a aflição da nossa dúvida, o peso da nossa descrença, tudo o que semeamos à nossa volta pelo que pensamos, pelo que sentimos, pelo que fazemos. Assim, imerso no mundo dos homens, «aprendeu» a amá-­los incondicionalmente, sem exigir que aceitássemos ou reconhecêssemos esse sacrifício, oferecendo-nos simplesmente essa qualidade plena e única: doravante também vós, seres humanos, podem aprender a amar incondicionalmente. 

Sempre que o conseguirmos fazer, reconhecemo-lo entre nós – isto é, conhecêmo-lo de novo – na liberdade de o querermos escolher como mestre desta aprendizagem. Porém, como passos essenciais, temos que aprender primeiro a mergulhar, com este corpo que agora nos abriga, nesta experiência de sermos humanos aqui e agora, prisioneiros, mas livres, labutando na escuridão e ansiando pela luz, para que aprendamos em primeiro lugar a amar-nos incondicionalmente, a nós, fazedores imperfeitos da nossa biografia. Se conseguirmos essa espécie de ascensão individual, que o amor por nós próprios nos pode conceder, estamos a partilhar a plenitude desse sentimento que Ele por nós sentiu, a partir do qual podemos iniciar todo(s) o(s) encontro(s) com o(s) outro(s), pois é nesse «lugar» de ascensão que o nosso olhar pode reconhecer o que é, em cada um (e em nós mesmos).

Por causa da(s) guerra(s) sejamos capazes de tornar este tempo, num tempo de aprender a amar sem condições nem exigências. Como Kühlewind nos ensinou, façamos um momento de pausa de cada vez que «olharmos» alguém, porque a verdadeira atenção, sendo uma força vertical, permitir-nos-á ascender até onde quisermos chegar.

Leonor Malik 

  1. H. Köhler, En verité il n’ pas d’enfants difficiles, Êditions Novalis, 1998
  2. Schiller, in Cartas sobre a Educação do Homem: «Cada ser individual tem em si, de acordo com a sua disposição e determinação, um homem ideal puro, identificar-se com a unidade imutável do qual, é a grande tarefa da sua existência em todas as vicissitudes.»

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